sexta-feira, 18 de março de 2011

Pequeno Manifesto Docente – notícias extra-oficiais do magistério público brasileiro contemporâneo


      Da educação infantil ao ensino médio, o exercício do magistério público oficial no Brasil globalizado e dito “emergente” tem sido, para certa categoria de educadores, uma experiência emocional. Para tais atores sociais do século XXI, falar, descarregar tensões, contar histórias, significar e partilhar experiências e dilemas vividos tornou-se imperativo político e necessidade terapêutica prioritária. Imperativo político porque o debate “oficial” sobre educação popular de massa no Brasil contemporâneo reflete predominantemente o horizonte de setores acadêmicos burgueses e reacionários, o tecnicismo de grupos retóricos e sem conhecimento de causa,  o tradicionalismo esquerdista dos sindicalistas, o imediatismo de mídias oportunistas e sensacionalistas e o marxismo ortodoxo de militantes ainda pouco interessados no que se passa à queima roupa no cotidiano das atuais escolas públicas oficiais brasileiras. 
    Quem são, em termos absolutamente reais, os educadores, educandos e pais de educandos, atores sociais de carne, osso e "alma", protagonistas da saga educacional pública brasileira contemporânea? Afinal, o que são, quais são e no que consiste as micro-relações cotidianas estabelecidas e implementadas no seio das comunidades escolares públicas oficiais brasileiras? Quais os reais produtos e subprodutos pedagógicos, sociais e emocionais derivados dessas micro-relações cotidianas? Quais reais obstáculos e quais reais margens de manobra apresentam-se diariamente a tais comunidades escolares? Definitivamente o macro e panorâmico debate “oficial” sobre a educação pública brasileira atual não responde satisfatoriamente a tais questões, tão pouco as tem como ponto de partida, vide a última campanha eleitoral presidencial em 2010. Ademais, ocasionais e massificadas reações a tragédias de repercussão nacional e internacional ocorridas no interior de escolas públicas oficiais brasileiras não resgatam as suas problemáticas cotidianas do isolamento social: uma boa compreensão da problemática educacional pública oficial brasileira requer boas e imparciais etnografias dos seus cotidianos escolares.
    Quanto à necessidade terapêutica prioritária em que se tornou o “falar” para certos educadores da rede pública oficial brasileira contemporânea, a expropriação cognitiva é um dilema docente por estes experimentado em diferentes espaços de convívio profissional: nos momentos de planejamento junto a coordenadores pedagógicos sutil e refinadamente autoritários; nos tantos equivocadamente chamados “cursos de capacitação docente”; nos projetos pedagógicos governamentais empurrados de cima para baixo; nas relações institucionais estabelecidas com gestores e agentes do poder público adeptos do assédio moral como instrumento de gestão humana; no jogo relacional não raras vezes hipócrita   vivenciado junto a alunos, pais e colegas de trabalho egocêntricos e narcisistas; no diálogo insatisfatório com representantes de setores paternalistas do "Direito educacional infanto-juvenil"; e no contato com juntas médicas racionalistas, relutantes em reconhecer a existência de vínculos entre magistério público oficial e seqüelas físico-emocionais docentes. Haverá prova maior de inteligência emocional e superávit cognitivo, por parte de um educador da rede pública brasileira em atividade, do que a percepção e gestão solitárias do próprio desequilíbrio bioenergético ocupacional, em meio a uma rede de micro-relações e intrigas cotidianas similar a um truncado e desgastante Big Brother? (refiro-me ao reality show da TV Globo e não ao personagem fictício da obra “1984”, do escritor inglês George Orwell). Ora, mesmo quando eleva o seu nível de escolaridade formal e amplia e refina o seu aparato intelectual, confrontando a imagem de “simplista” e “empirista” que circula a seu respeito, ainda assim o professor da rede pública oficial brasileira atuante nas faixas que vão da educação infantil ao ensino médio depara-se com negações ideológicas de sua condição de sujeito cognitivo capaz de refletir, compreender, significar e partilhar experiências e dilemas educacionais vividos; aí reside um problema crucial: no meio educacional brasileiro atual, ainda marcadamente aristocrático e elitista, o exercício da leitura, entendimento e interpretação dos fenômenos e dilemas sócio-educativos de massa têm sido prerrogativa socialmente reconhecida tão somente e apenas de educadores atuantes no segmento universitário, bem como de celebridades midiáticas elevadas à condição de inalcançáveis e inquestionáveis gurus; a construção, manutenção, ideologização e imposição de um mitiê intelectual assim ultra verticalizado alimenta interesses específicos em se tratando da educação pública oficial brasileira; o ideológico e rentável mercado de “capacitação” de professores da rede pública que o diga; a política de capacitação docente concebida e implementada de forma centralizada, pelos gestores públicos educacionais brasileiros contemporâneos, reflete o desprezo de um Estado reacionário para com o conhecimento de causa duramente acumulado por seu corpo docente de linha de frente.
    Mas quem serão, afinal, os tais educadores da rede pública oficial brasileira contemporânea, atuantes nos segmentos compreendidos entre a educação infantil e o ensino médio, para os quais o “falar” tornou-se imperativo político e necessidade terapêutica prioritária? Não se trata de imperativo político no sentido partidário da expressão ou necessidade terapêutica em termos necessariamente clínicos, psicanalíticos ou psiquiátricos. Estamos falando de uma ainda reduzida e fragmentada trupe de solitários em ebulição; seres quânticos e em conflito com o seu tempo; professoras e professores na contramão de uma sociedade desvairadamente urbanista, consumista, tecnicista e acriticamente deslumbrada com as “maravilhas” do capitalismo global, sociedade essa da qual o "grosso" da escola pública brasileira oficial atual é reflexo direto e cúmplice consciente; alguns desses "educadores na contramão do sistema" são simpatizantes de ideais libertários gestados no pós-segunda guerra mundial e, portanto, indivíduos incompreendidos em seus nichos cotidianos de existência profissional; são seres humanos insatisfeitos com a perspectiva yuppie e anti-utópica dos tempos atuais; trata-se de gente prematuramente aberta à possibilidade de uma futura “nova contracultura” para as novas condições históricas; são "figuras" indigestas aos olhos dos que se esbaldam na globalizada zona de conforto intelectual contemporânea; são interlocutores críticos dos paradigmas politicamente corretos; são professoras e professores  avessos à direita, à esquerda e ao centro da viciada política partidária brasileira; são propositores da imediata “desmassificação” da educação pública oficial e rejeitam a burocracia e intervenção do Estado em seus  fazeres pedagógicos cotidianos.  
    Quanto à necessidade de “falar”, desses tais educadores, não se trata de uma demanda de natureza retórica, mas da urgência de catarse e conexão entre iguais; carecem de tribais e nutritivas rodas de conversa em volta do fogo; carecem de queijo, vinho e música boa; carecem de aldeiamento e comunhão profunda entre pares; são professoras e professores de carne, osso e "alma", diariamente embrenhados em salas de aula periferia adentro; são professoras e professores emocionalmente "carregados" e saturados da sacanagem e calúnia alheias; são educadores ávidos por registrar, significar e celebrar de forma independente as suas periféricas, ricas e complexas experiências educacionais; são professoras e professores a fim de horizontalizar as relações de poder nas quais estão cotidianamente inseridos; são professoras e professores humanistas, que se importam de verdade com a trama que se tece entre indivíduo, sociedade e  meio ambiente; são professoras e professores carentes de felicidade profissional e que não querem ser heróis de nada.
* Texto de Vanzye Fargom, professor da Rede Pública Municipal de Salvador, apoiado em cafezinhos filosóficos estabelecidos com as professoras Nazareth Oliveira, Tatiana Gomes e Airam Farias, ambas educadoras da rede pública brasileira contemporânea, atuantes em diferentes regiões do país.
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