segunda-feira, 4 de julho de 2011

O cafezinho filosófico de todo dia - diálogo roteirizado com a professora Nazareth Oliveira.

Em meio ao massificado e mecânico dia a dia da escola pública brasileira contemporânea, professoras e professores humanistas insistem na possibilidade de conexão interpessoal no espaço de trabalho.


É intervalo; estamos na sala de convivência e gozamos cronometrados vinte minutos de ócio controlado; são 10 horas da manhã de 30 de julho de 2009, 5ª feira, inverno soteropolitano; teorias e teoremas explicitam e explicam dilemas futebolísticos baianos;  relatos cruzados noticiam um recente atropelamento envolvendo uma colega em frente à escola, no tradicional bairro da Federação. Em meio a vozes e ao entra e sai de gente, chega, pelas mãos da funcionária de apoio, kit contendo jarra d'água, copos, café, açúcar, talheres e leite em pó; sentada em volta da mesa, a professora Nazareth toma um café, ajeita os óculos e degusta o "Jornal A Tarde"; no lado oposto da "Távola Redonda", eu leio e ajusto observações num diário de classe.

NAZARETH (Em voz alta, influenciada pelo que está lendo)

_ Depois dizem que o racismo acabou! Meu cunhado é negro e é constantemente abordado pela polícia, toda vez que passa pelo bairro de Nazaré, ali na altura do Campo da Pólvora! E o complicado é que o policial também é negro!

Trezentas conversas sonorizam e animam a apertada sala de convivência. Nazareth rastreia notícias e procura interlocutor: manda em voz alta uma nota sobre a morte de um policial civil, executada por um policial militar. Estou em silêncio e parcialmente imerso no diário de classe.

NAZARETH (levantando-se e deslocando-se em minha direção, empunhando o suplemento cultural do jornal e agora soprando em off, próximo ao meu ouvido)

_ Olha só! Os judeus! Um povo que tem memória! Revivem  ritualmente fatos e acontecimentos milenares como se fossem aqui e agora.

Saio das cadernetas e fito Nazareth num silêncio enigmático e reflexivo.      

NAZARETH (Em voz baixa e tocando a mão esquerda no meu ombro direito)

_ Porque você tá assim? Tá calado! Sem interação! O que você tem?

EU  (Em voz baixa)
                         
_ Eu tenho uma história.

NAZARETH

Não entendi!

EU

Eu tenho uma história aqui nessa escola que às vezes me deixa bolado, sabe!  Mas tá tranquilo. Relaxa! Acho um luxo o indivíduo desde muito cedo aprender a entender  a si mesmo como um elo de uma corrente de ascendência e descendência. Sociedades africanas tribais também se estruturam a partir dessa noção.         

NAZARETH 

_ Povos indígenas também.

EU     

_ Quem sabe a solidão individual e o pavor do envelhecimento e da morte sejam construções culturais das sociedades ocidentais industrializadas! Os judeus tradicionalistas e os...
     
NAZARETH (Interrompendo)      

_ As culturas ocidentais de modo geral são narcisistas; veja essa geração que aí está; se acha a inventora de si; já tem intelectual referindo-se a essa geração com o termo provocativo “Geração Inaugural”. Cê já ouviu falar?    

EU

Geração inaugural? Como assim?

                                     
NAZARETH

Uma geração sem noção de herança; uma geração que pensa ser ela a fonte absoluta de si mesma, em termos sociais, políticos, culturais e tecnológicos. Nélida Piñon, quando da sua posse como presidente da Academia Brasileira de Letras, em 1996, fala coisas interessantes a esse respeito. Cê já ouviu falar num filósofo francês chamado Alain FinkielKraut; tem um livro dele chamado “A Ingratidão”: uma reflexão profunda sobre a relação do homem  de hoje com a História.                                                     

EU (rabiscando as indicações bibliográficas num guardanapo)
                             
_ Eu me interesso bastante pelos dilemas das relações intergeracionais no espaço escolar contemporâneo, sabe! Me interesso sobretudo quando essas relações se configuram como relações de poder em diferentes esferas. Renato Russo afirmou, numa de suas entrevistas, que os adultos têm inveja dos jovens. E aí? O que responder ao nosso saudoso e rebelde roqueiro brasiliense? E se ele estivesse vivo, hoje já um cinquentão, se diria um invejoso dessa geração de adolescentes que aí está? Será mesmo que questões clássicas como disciplina, comportamento, notas, rendimento escolar, etc representam a totalidade e/ou a essência dos dilemas intergeracionais envolvendo professores e alunos no espaço escolar em diferentes momentos históricos? Vários filmes exploram essa problemática de forma interessante. Eu adoro "Ao Mestre Com Carinho". Ontem, em sala de aula, rolou um café filosófico sobre a inevitabilidade do envelhecimento, da doença e da morte, explorando, sob diferentes aspectos, nuances e implicações  do desejo de invulnerabilidade e pretensão de juventude eterna por diferentes gerações. Eu tenho um certo gosto pela problemática da coexistência e convivência de diferentes gerações num mesmo espaço e tempo históricos. Por outro lado, eu tenho lido discursos antropológicos politicamente corretos mostrando culturas orientais e tribais como portadoras de cosmovisões ecológicas e de estruturas familiares harmonicamente extensas, nas quais o envelhecimento é um privilégio e a morte individual um salto energético para a eternidade e para a condição de objeto de culto; acho muito sedutora essa utopia da conexão profunda e mega-atemporal entre diferentes gerações e meio ambiente, via mecanismos culturais; adorei o filme Avatar, de James Cameron, por ser, de certa forma, um estímulo a esse tipo de sonho coletivo. Complicado é que nessa nossa civilização ocidental industrializada, instantânea e utilitarista a fragmentação e o isolamento da família nuclear burguesa capitalista parece não deixar qualquer espécie de brecha para utopias dessa natureza.




NAZARETH                      

Nossa cultura é tão preconceituosa! Um idoso tem tanto a contribuir; tanta sabedoria para partilhar! Veja o caso de Cora Coralina!

EU     

Caetano Veloso compôs uma canção chamada “O homem Velho”, inspirada no pai dele; cê conhece? O exemplo de Cora Coralina é o meu grande trunfo: aquela velha máxima de que “nunca é tarde para começar” ou "antes tarde do que nunca".  Quantos nessa vida tiveram que evoluir através de dores de longo prazo, derivadas de erros fatais cometidos em tenra idade!

O funcionário encarregado de acionar o sinal de retorno para a sala de aula observa o final da conversa com ar de desdém, meneando a cabeça de forma irônica e debochada; soa o alarme como um apito de fábrica e retornamos ligeiramente atrasados para as nossas respectivas salas de aula; ainda assim, deixo por um instante os alunos e corro até a sala de Nazareth.

EU (Entrando apressado na sala de Nazareth)

_ Preciso de mais tempo!

NAZARETH (Com o piloto na mão)          

_ Mais tempo comigo?

EU (Ansioso)

_ Também! Mas agora estou me referindo a mais tempo nessa vida! Ainda não realizei o meu potencial, a minha missão! Tenho medo de não haver tempo suficiente para fazer o que precisa ser feito! Ainda não estou pronto! Preciso da oportunidade futura de condensar  num curtíssimo espaço de tempo a minha experiência do mundo e da vida, através de canais de expressão artística! O trabalho extenuante aqui na escola leva muito da minha  energia! Tenho medo de não conseguir me desvencilhar dos obstáculos!
                                                 
NAZARETH (Sorrindo baixinho)

_ O tempo de cada um de nós por aqui é o tempo que tem de ser. É impossível um acordo com o tempo! Comece a escrever! Tens algo a dizer!                                                                                                          CORTA          
Registro, texto e micro-roteiro de Vanzye Fargom, em homenagem à professora Nazareth Oliveira.
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Um comentário:

  1. vou deixar aqui o mesmo comentário que deixei lá no RL

    É, meu amigo, parece que a tese do Fukuyama (O Fim da História e o Último Homem) está vingando (ele que foi tão ridicularizado à epoca). O desprezo com permanências vai se confundindo com a consideração com o passado pelas gerações atuais. Roteiro pra lá de magnífico esse seu. Abraço grande. Paz e bem.

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